Decisões históricas da Suprema Corte Americana
“A Suprema Corte se rende às lições da experiência e à força da melhor argumentação, reconhecendo que o processo de tentativa e erro, tão proveitoso nas ciências físicas, também é apropriado à atividade judicial.” (BRANDEIS, juiz da Suprema Corte dos EUA, 1932)
Publicado por Lucas Bezerra Vieira - 10 meses atrás
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Caros amigos,
Compartilho com vocês hoje um texto extraído do site da embaixada dos Estados Unidos, que reúne os principais julgados da Suprema Corte Americana. A leitura desse texto nos permite entender alguns aspectos relevantes do sistema jurídico norte-americano, além de ser uma breve viagem pela história dos EUA. Isso nos mostra o quanto a evolução de uma sociedade caminha atrelada à evolução do seu arcabouço judicial.
OBS: No texto ainda não se encontra incluso a aprovação do casamento gay, decisão que, sem dúvidas, integra o rol de julgamentos mais importantes desta Corte.
Boa leitura!
Desde que se reuniu pela primeira vez em 1790, a Suprema Corte dos EUA já emitiu milhares de decisões sobre todo tipo de assunto, desde os poderes do governo aos direitos civis e à liberdade de imprensa. Embora muitas dessas decisões sejam pouco conhecidas e de pouco interesse para o público em geral, várias se destacam pelo impacto que tiveram na história americana. Apresentamos aqui o resumo de alguns dos casos mais significativos.
Marbury contra Madison (1803)
Geralmente conhecida como a mais importante da história da Suprema Corte, a decisão do processo Marbury contra Madison estabeleceu o princípio da revisão judicial e o poder da Suprema Corte para determinar a constitucionalidade dos atos do Legislativo e do Executivo.
O caso surgiu de uma disputa política após a eleição presidencial de 1800 na qual Thomas Jefferson, democrata republicano, derrotou o presidente candidato à reeleição, John Adams, federalista. Nos últimos dias do governo Adams, o Congresso de maioria federalista criou vários cargos judiciais, incluindo 42 juízes de paz para o Distrito de Colúmbia. O Senado aprovou as nomeações, que foram então assinadas pelo presidente, cabendo ao secretário de Estado oficializá-las e entregá-las. Na pressa das medidas de última hora, o secretário de Estado que estava deixando o governo acabou não entregando as nomeações a quatro juízes de paz, entre eles William Marbury.
O novo secretário de Estado do presidente Thomas Jefferson, James Madison, recusou-se a entregar as nomeações, uma vez que o novo governo estava irritado com os federalistas por tentarem colocar membros do seu partido no Judiciário. Marbury entrou com uma ação na Suprema Corte para obrigar Madison a lhe entregar sua nomeação.
Se a Suprema Corte fosse favorável a Marbury, Madison ainda poderia se recusar a entregar a nomeação, e a Corte não teria como fazer cumprir a determinação. Se deliberasse contra Marbury, a Suprema Corte correria o risco de submeter o Judiciário aos jeffersonianos, permitindo que Marbury não recebesse o cargo a que legalmente tinha direito. O presidente da Suprema Corte, John Marshall, resolveu o impasse determinando que a Suprema Corte não tinha autoridade para atuar nesse caso. Marshall declarou inconstitucional a Seção 13 da Lei do Judiciário que dava esse poder à Suprema Corte, uma vez que ela ampliava sua competência original definida pela própria Constituição. Ao decidir não apreciar esse caso, a Suprema Corte assegurou sua posição de árbitro supremo da lei.
Gibbons contra Ogden (1824)
O primeiro governo dos Estados Unidos segundo os Artigos da Confederação mostrou-se fraco, em parte porque lhe faltava o poder para regulamentar a economia da nova nação, inclusive o fluxo do comércio interestadual. A Constituiçãodeu ao Congresso dos EUA o poder de “regulamentar o comércio (...) entre os vários estados”, mas essa autoridade era muitas vezes questionada pelos estados que queriam manter o controle sobre os assuntos econômicos.
No início do século 19, o estado de Nova York aprovou uma lei que exigia que os operadores de barcos a vapor que viajavam entre Nova York e Nova Jersey obtivessem uma licença de Nova York. Aaron Ogden tinha essa licença; Thomas Gibbons não. Quando Ogden soube que Gibbons era seu concorrente e não possuía a autorização de Nova York, entrou com uma ação para interditá-lo.
Gibbons possuía uma licença federal para navegar em águas costeiras segundo a Lei de Cabotagem de 1793, mas os tribunais do estado de Nova York concordaram com Ogden que Gibbons violara a lei por não ter a licença do estado de Nova York. Porém, quando Gibbons levou o caso à Suprema Corte, os juízes decidiram pela inconstitucionalidade da lei de Nova York porque ela restringia o poder do Congresso dos EUA de regulamentar o comércio. “A palavra ‘regulamentar’ implica, por natureza, no poder total sobre o que deve ser regulamentado”, declarou a Suprema Corte. Portanto, “exclui, necessariamente, a ação de todos os outros que executariam a mesma operação sobre a mesma coisa”.
Dred Scott contra Sandford (1857)
Dred Scott era escravo cujo dono, John Emerson, tirou-o do Missouri, estado que permitia a escravidão, e levou-o para Illinois, onde a escravidão era proibida. Anos depois, Scott voltou ao Missouri com Emerson. Scott acreditava que, por ter morado em um estado livre, não deveria mais ser considerado escravo.
Emerson morreu em 1843, e três anos depois Scott processou a viúva de Emerson para obter sua liberdade. Scott ganhou a ação em um tribunal do Missouri em 1850, mas em 1852 a Suprema Corte estadual reverteu a decisão do tribunal de instância inferior. Enquanto isso, a sra. Emerson casou-se novamente, e Scott tornou-se propriedade legal do irmão dela, John Sanford (grafado incorretamente como Sandford nos autos do processo). Scott entrou com uma ação contra Sanford para obter sua liberdade em um tribunal federal, e a decisão foi contrária a Scott em 1854.
Quando o processo chegou à Suprema Corte, os juízes determinaram que Scott não havia se tornado um homem livre por ter morado em um estado livre e que, como negro, Scott não era cidadão e, portanto, não tinha direito de entrar com uma ação em um tribunal de justiça. A decisão foi muito criticada e contribuiu para que Abraham Lincoln, que se opunha à escravidão, fosse eleito presidente em 1860, precipitando o início da Guerra Civil em 1861. A decisão do processo Dred Scott contra Sandford foi revogada pela 13aEmenda à Constituição, que aboliu a escravidão em 1865, e pela 14aEmenda, que conferiu cidadania aos ex-escravos em 1868.
Conselho Nacional de Relações de Trabalho (NLRB) contra Jones & Laughlin Steel Corp. (1937)
Enquanto o caso Gibbons contra Ogden estabeleceu a supremacia do Congresso na regulamentação do comércio interestadual, o caso NLRB contra Jones & Laughlinaumentou a autoridade do Congresso, passando da regulamentação do comércio propriamente dito para a regulamentação das práticas comerciais das indústrias participantes do comércio interestadual.
A Jones & Laughlin, um dos maiores produtores de aço do país, violou a Lei Nacional das Relações de Trabalho de 1935 ao demitir dez funcionários por participarem de atividades sindicais. A lei proibia uma série de práticas de trabalho injustas e protegia o direito dos trabalhadores de formar sindicatos e realizar negociações coletivas. A empresa recusou-se a cumprir uma determinação do NLRB para readmitir os trabalhadores. Um Tribunal Regional Federal de Recursos negou-se a fazer cumprir a determinação do conselho, e a Suprema Corte reviu o processo.
A questão, nesse caso, era se o Congresso tinha ou não autoridade para regulamentar as atividades “locais” das empresas participantes do comércio interestadual — ou seja, as atividades que ocorrem dentro de um estado. A Jones & Laughlin insistia que as condições de sua fábrica não afetavam o comércio interestadual e, portanto, não estavam sujeitas ao poder de regulamentação do Congresso. A Suprema Corte discordou, declarando que “a paralisação dessas operações [de produção] por conflito industrial teria impacto muito grave sobre o comércio interestadual. (...) A prática tem sido pródiga em demonstrar que o reconhecimento do direito dos funcionários de ter suas próprias organizações e de escolher representantes entre seus pares para atuar em negociações coletivas é quase sempre uma condição essencial para a paz industrial”. Ao manter a constitucionalidade da Lei Nacional das Relações de Trabalho, a Suprema Corte concedeu uma vitória ao trabalho organizado e preparou o terreno para regulamentações industriais mais abrangentes pelo governo federal.
Brown contra Conselho de Educação (1954)
Antes desse caso histórico, muitos estados e o Distrito de Colúmbia mantinham sistemas de segregação racial em escolas amparados na decisão da Suprema Corte no casoPlessy contra Ferguson, de 1896, que permitia a segregação se os serviços fossem iguais. Em 1951, Oliver Brown, de Topeka (Kansas), questionou a doutrina “separados, mas iguais” quando processou o conselho escolar municipal no interesse de sua filha de 8 anos. Brown queria que a filha frequentasse a escola para brancos que ficava a 5 quarteirões da sua casa e não a escola para negros, a 21 quarteirões de distância. Por considerar que as escolas eram praticamente iguais, um tribunal federal deliberou contra Brown.
Nesse meio tempo, os pais de outras crianças negras da Carolina do Sul, da Virgínia e de Delaware entraram com processos semelhantes. O tribunal de Delaware concluiu que as escolas para negros eram inferiores às escolas para brancos e ordenou que as crianças negras fossem transferidas de escola, mas os dirigentes das escolas apelaram da decisão, recorrendo à Suprema Corte.
A Suprema Corte apreciou os argumentos de todos esses casos ao mesmo tempo. As peças processuais apresentadas pelos litigantes negros incluíam dados e depoimentos de psicólogos e cientistas sociais sobre os males causados às crianças negras pela segregação. Em 1954, a Suprema Corte decidiu por unanimidade que “... Na área da educação não há lugar para a doutrina ‘separados, mas iguais’” e concluiu que a segregação nas escolas públicas negava às crianças negras “a igual proteção das leis garantida pela 14aEmenda”.
Gideon contra Wainwright (1963) E Miranda contra Arizona (1966)
Nos anos 1960, duas decisões da Suprema Corte respaldaram os direitos das pessoas acusadas de cometer crimes.
Clarence Earl Gideon foi preso por arrombar um salão de jogos na Flórida em 1961. Quando solicitou um advogado indicado pela Justiça para defendê-lo, o juiz negou o pedido alegando que a lei estadual exigia a indicação de um advogado somente em casos capitais — casos envolvendo a morte de pessoas ou passíveis de pena de morte. Gideon fez sua própria defesa e foi considerado culpado. Na prisão, passou horas na biblioteca estudando livros de Direito e escrevendo uma petição à Suprema Corte para apreciação do seu caso. A Suprema Corte decidiu que Gideon não havia tido um julgamento justo e determinou que os estados deveriam providenciar um advogado para os acusados que não tivessem recursos para contratar um profissional. Ao ser julgado novamente com o auxílio de um advogado de defesa, Gideon foi absolvido.
Bastaram três anos para a Suprema Corte decidir que os acusados deveriam ter direito a um advogado bem antes de entrar em uma sala de audiência. Ernesto Miranda foi condenado por sequestro e estupro em um tribunal estadual do Arizona. Sua condenação baseou-se em uma confissão feita por Miranda a policiais após duas horas de interrogatório, sem ter sido informado de que tinha o direito de solicitar a presença de um advogado. Em sua decisão, a Suprema Corte determinou que os policiais, ao efetuar prisões, devem informar sobre o que hoje se conhece por Direitos Miranda, segundo os quais o suspeito tem o direito de permanecer em silêncio; que qualquer coisa que diga pode ser usada contra ele; que tem direito à presença de um advogado durante o interrogatório; e que tem direito a um defensor público caso não tenha recursos para contratar um advogado.
A decisão do processo Miranda contra Arizona é uma das decisões mais conhecidas da Suprema Corte porque os Direitos Miranda são frequentemente retratados em filmes e programas de TV americanos. No entanto, em 1999, um tribunal federal de recursos contestou a decisão no casoDickerson contra Estados Unidos, em que um assaltante de banco condenado alegou não ter sido devidamente informado sobre seus direitos. Em junho de 2000, a Suprema Corte revogou a decisão do caso Dickerson por 7 votos a 2, reafirmando a validade dos Direitos Miranda.
New York Times Co. Contra Sullivan (1964)
A 1aEmenda à Constituição dos EUA garante a liberdade de imprensa, mas durante anos a Suprema Corte recusou-se a usá-la para proteger os meios de comunicação contra ações judiciais por difamação — ações decorrentes da publicação de informações falsas que prejudicam a reputação de alguém. A decisão da Suprema Corte no processo New York Times Co. Contra Sullivan revolucionou a lei de difamação nos Estados Unidos com a decisão de que autoridades públicas não poderiam ganhar processos por difamação simplesmente provando que a informação publicada é falsa. A Suprema Corte determinou que o reclamante também deve provar que os repórteres ou editores agiram de “má-fé” e publicaram a informação “sem a preocupação de confirmar sua veracidade”.
O caso surgiu com um anúncio de página inteira publicado noNew York Times pela Conferência da Liderança Cristã do Sul destinado a arrecadar fundos para a defesa do líder dos direitos civis Martin Luther King Jr., que havia sido preso no Alabama em 1960. L. B. Sullivan, comissário municipal de Montgomery (Alabama) e responsável pelo Departamento de Polícia, alegou que o anúncio o caluniava ao descrever de forma falsa a atuação da força policial da cidade. Sullivan processou os quatro clérigos que publicaram o anúncio e oNew York Times, que não verificou sua veracidade.
O anúncio de fato continha várias imprecisões, e um júri concedeu uma indenização de US$ 500 mil a Sullivan. O jornal e os líderes dos direitos civis recorreram da decisão à Suprema Corte, que deu a eles ganho de causa por unanimidade. A Suprema Corte decidiu que as leis de difamação não podem ser usadas “para impor sanções à expressão de crítica à conduta oficial de autoridades públicas” e que exigir dos críticos que comprovem a veracidade de seus comentários levaria à autocensura. A Suprema Corte não encontrou provas de que o jornal ou os clérigos usaram de má-fé na publicação do anúncio.
Cidadãos Unidos contra Comissão Eleitoral Federal (2010)
A liberdade de expressão é garantida pela 1aEmenda, mas como esse direito aplica-se aos gastos das campanhas eleitorais tem sido muito debatido. O grupo sem fins lucrativos Cidadãos Unidos entrou com uma ação questionando uma lei de 2002 que restringia os gastos políticos de empresas e sindicatos. Um tribunal de instância inferior havia afirmado que a veiculação de um filme do grupo criticando a então candidata presidencial Hillary Clinton pouco antes da eleição de 2008 era ilegal.
A decisão da Suprema Corte em 2010 foi bem além da questão desse caso em si, revogando grande parte da lei de 2002 ao manter a inconstitucionalidade de qualquer restrição aos gastos de empresas e sindicatos em propagandas políticas. A Suprema Corte não alterou a proibição de contribuições diretas de empresas e sindicatos para campanhas políticas.
Federação Nacional de Empresas Independentes et al. Contra Sebelius (2012)
Em 2012, a Suprema Corte manteve a controversa Lei de Serviços de Saúde Acessíveis defendida pelo presidente Barack Obama, que inclui a exigência de que a maioria dos americanos tenha seguro-saúde. A decisão, redigida pelo presidente da Suprema Corte, John Roberts, rejeitou, no entanto, a defesa da lei feita pelo governo Obama com base na cláusula da Constituição que permite ao Congresso regulamentar o comércio interestadual. Assim, a Suprema Corte decidiu que a obrigatoriedade de as pessoas físicas adquirirem seguro-saúde era constitucional de acordo com os poderes do Congresso de instituir impostos.
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