HABEAS CORPUS 124.306 RIO DE
JANEIRO RELATOR : MIN. MARCO AURÉLIO
PACTE.(S) : EDILSON
DOS SANTOS
PACTE.(S) : ROSEMERE
APARECIDA FERREIRA
IMPTE.(S) : JAIR LEITE PEREIRA
COATOR(A/S)(ES) : SUPERIOR
TRIBUNAL DE JUSTIÇA
VOTO-VISTA O MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO:
Ementa: DIREITO PROCESSUAL PENAL. HABEAS
CORPUS. PRISÃO
PREVENTIVA. AUSÊNCIA
DOS REQUISITOS PARA SUA DECRETAÇÃO. INCONSTITUCIONALIDADE DA INCIDÊNCIA DO TIPO PENAL DO ABORTO NO
CASO DE INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GESTAÇÃO NO PRIMEIRO TRIMESTRE. ORDEM CONCEDIDA DE OFÍCIO.
1. O habeas corpus não é cabível na hipótese. Todavia, é o caso de
concessão da ordem de ofício, para o fim de
desconstituir a prisão preventiva, com base em duas ordens de fundamentos.
2. Em primeiro lugar, não estão
presentes os requisitos que legitimam a prisão cautelar, a saber: risco para a
ordem pública, a ordem econômica, a
instrução criminal ou a aplicação da lei penal (CPP, art. 312). Os acusados são
primários e com bons antecedentes, têm trabalho e residência fixa, têm
comparecido aos atos de instrução e cumprirão pena em regime aberto, na
hipótese de condenação.
3.
Em segundo lugar, é preciso conferir interpretação conforme a
Constituição aos próprios arts. 124 a 126 do Código Penal – que tipificam o crime de aborto – para excluir do
seu âmbito de incidência a interrupção voluntária da gestação efetivada no
primeiro trimestre. A criminalização, nessa hipótese, viola diversos direitos
fundamentais da mulher, bem como o princípio da proporcionalidade.
4.
A criminalização é
incompatível com os seguintes direitos fundamentais: os direitos sexuais e reprodutivos da mulher, que não pode ser obrigada
pelo Estado a manter uma gestação indesejada; a autonomia da mulher, que deve conservar o direito de fazer suas
escolhas existenciais; a integridade
física e psíquica da gestante, que é quem
sofre, no seu
corpo e no
seu psiquismo, os efeitos da
gravidez; e a
igualdade da mulher, já
que homens não engravidam e, portanto, a equiparação plena de gênero depende de
se respeitar a vontade da mulher nessa matéria.
5.
A tudo isto se acrescenta o
impacto da criminalização sobre as mulheres pobres. É que o tratamento como
crime, dado pela lei penal brasileira, impede que estas mulheres, que não têm
acesso a médicos e clínicas privadas, recorram ao sistema público de saúde para
se submeterem aos procedimentos cabíveis. Como consequência, multiplicam-se os
casos de automutilação, lesões graves e óbitos.
6. A tipificação penal viola, também, o princípio da proporcionalidade por
motivos que se cumulam: (i) ela constitui medida de duvidosa adequação para
proteger o bem jurídico que pretende tutelar (vida do nascituro), por não
produzir impacto relevante sobre o número de abortos praticados no país, apenas
impedindo que sejam feitos de modo seguro;
(ii) é possível que o Estado evite
a ocorrência de abortos por meios mais eficazes e menos lesivos do que a
criminalização, tais como educação sexual, distribuição de contraceptivos e
amparo à mulher que deseja ter o filho, mas se encontra em condições adversas;
(iii) a medida é desproporcional em sentido estrito, por gerar custos sociais
(problemas de saúde pública e mortes)
superiores aos seus benefícios.
7.
Anote-se, por derradeiro, que
praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo trata a
interrupção da gestação durante o primeiro trimestre como crime, aí incluídos
Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália, Espanha,
Portugal, Holanda e Austrália.
8.
Deferimento da ordem de
ofício, para afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-se a decisão
aos corréus.
I.
SÍNTESE DA DEMANDA
1.
Trata-se de habeas corpus, com pedido de concessão
de medida cautelar, impetrado em face de acórdão da Sexta Turma do Superior
Tribunal de Justiça, que não conheceu do HC 290.341/RJ, de relatoria da
Ministra Maria Thereza de Assis Moura. Extrai-se dos autos que os pacientes (que mantinham clínica
de aborto) foram presos em flagrante, em
14.03.2013, devido à suposta prática dos crimes
descritos nos arts. 1261 (aborto) e 2882 (formação de quadrilha) do Código Penal, em concurso material por quatro
vezes, por terem provocado “aborto na
gestante/denunciada (...) com o consentimento desta”.
2.
Em 21.03.2013, o Juízo da 4ª Vara Criminal da Comarca de Duque de
Caxias/RJ concedeu a liberdade provisória aos pacientes3. Todavia, em 25.02.2014, a
4ª Câmara Criminal proveu recurso em sentido estrito interposto pelo Ministério
Público do Estado do Rio de Janeiro, para decretar a prisão preventiva dos
pacientes, com fundamento na garantia da ordem
pública e na necessidade de
assegurar a aplicação da lei penal. Na sequência, a defesa impetrou HC no STJ,
que não foi conhecido pela Corte. O acórdão, porém, examinou o mérito e assentou não ser ilegal o encarceramento na hipótese4.
3.
Neste habeas corpus, os impetrantes alegam que não estão presentes os
requisitos necessários para a decretação de prisão preventiva, nos termos do
art. 312 do Código de Processo Penal. Nesse sentido, sustentam que: (i) os
pacientes são primários, com bons antecedentes e têm trabalho e residência fixa
no distrito da culpa; (ii) a custódia cautelar é desproporcional, já que
eventual condenação poderá ser cumprida em regime aberto; e (iii) não houve
qualquer tentativa de fuga dos pacientes durante o flagrante. Daí o pedido de
revogação da prisão preventiva, com expedição do alvará de soltura.
4.
Em 8.12.2014, o Ministro Marco
Aurélio, relator da ação, deferiu a medida cautelar pleiteada, em benefício dos
acusados Edilson dos Santos e Rosemere Aparecida Ferreira. Em 27.06.2015,
estendeu os efeitos da decisão aos demais corréus, Débora Dias Ferreira, Jadir
Messias da Silva e Carlos Eduardo de Souza e
Pinto.
5.
A Procuradoria-Geral da
República, em parecer subscrito pela Dra. Cláudia
Sampaio Marques, opinou pelo não conhecimento do pedido e, no mérito, pela denegação
da
1 Art. 126 - Provocar aborto com o
consentimento da gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos.
2 Art.
288. Associarem-se 3 (três) ou mais pessoas, para o fim específico de cometer
crimes: Pena - reclusão, de 1 (um) a 3 (três) anos. (Redação dada
pela Lei nº 12.850, de 2013)
3 A decisão considerou que ““as
infrações imputadas são de médio potencial ofensivo, com penas relativamente
brandas, permitindo que, em caso de condenação, sejam aplicadas sanções
conversíveis em penas restritivas de direitos ou, no máximo, a serem cumpridas
em regime aberto”.
4 De acordo com o acórdão recorrido,
“não é ilegal o encarceramento provisório que se funda em dados concretos a
indicar a necessidade da medida cautelar, especialmente em elementos extraídos
da conduta perpetrada pelos acusados, quais sejam, a gravidade concreta do
delito, demonstrada pela reprovabilidade exacerbada da conduta praticada e
tentativa em evadir do local dos fatos”.
ordem, cassando-se a liminar deferida aos pacientes e estendida aos
corréus.
6.
Iniciado o julgamento, o
Ministro Marco Aurélio votou pela admissão do habeas corpus e, no mérito, pelo deferimento da ordem para afastar
a custódia provisória, nos termos da liminar anteriormente deferida. Pedi vista
antecipada dos autos para uma análise mais detida da matéria.
SOLUÇÃO DO CASO
CONCRETO
I.
DESCABIMENTO DE HABEAS CORPUS
SUBSTITUTIVO DO RECURSO ORDINÁRIO CONSTITUCIONAL
7.
Inicialmente, verifico que se
trata de habeas corpus, substitutivo
do recurso ordinário constitucional, impetrado contra acórdão unânime da Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça que
não conheceu do HC 290.341/RJ. Nos termos da jurisprudência majoritária desta
Primeira Turma (HC 109.956, Rel. Min. Marco
Aurélio; HC 128.256,
Rel. Min. Rosa Weber), nessa
hipótese, o processo deve ser extinto, sem resolução do mérito, por inadequação
da via processual. Nada obstante isso, em razão
da excepcional relevância e delicadeza da matéria, passo a examinar a
possibilidade de concessão da ordem de ofício.
II.
AUSÊNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 312 DO CPP PARA DECRETAÇÃO DA PRISÃO
PREVENTIVA
8.
Em primeiro lugar, entendo que o decreto de prisão preventiva não
apontou elementos individualizados que evidenciem a necessidade da custódia
cautelar ou mesmo o risco efetivo de reiteração delitiva pelos pacientes e
corréus. Em verdade, a decisão limitou-se
a invocar genericamente a gravidade abstrata do delito de “provocar o
aborto com o consentimento da gestante” imputado, bem como a necessidade de
assegurar a aplicação da lei penal ante à suposta tentativa dos pacientes de se
evadirem do local dos fatos. No entanto, conforme notou o Ministro Marco
Aurélio em seu voto, “a liberdade dos
acusados tanto não oferece risco ao processo que a instrução criminal tem
transcorrido normalmente, conforme revelou a consulta realizada ao sítio do
Tribunal de Justiça, noticiando o comparecimento de todos à última audiência de
instrução e julgamento, ocorrida no dia 17 de agosto de 2015, quando já
soltos”.
9.
Não se encontram
preenchidos, no caso concreto, os requisitos do art. 312 do
Código de Processo Penal5, que exigem, para decretação da prisão
preventiva, que estejam presentes riscos para a ordem pública ou para a ordem
econômica, conveniência para a instrução criminal ou necessidade de assegurar a
aplicação da lei. Note-se que a prisão torna-se ainda menos justificável diante
da constatação de que os pacientes: (i) são primários e com bons antecedentes;
(ii) têm trabalho e residência fixa; (iii) têm comparecido devidamente aos atos
de instrução do processo; e (iv) cumprirão a pena, no máximo, em regime aberto,
na hipótese de condenação. Aplicável, portanto, a orientação jurisprudencial do
Supremo Tribunal Federal no sentido de que é ilegal a prisão cautelar decretada
sem a demonstração, empiricamente motivada, dos requisitos legais (HC 109.449,
Rel. Min. Marco Aurélio; e HC 115.623, Rel. Min. Rosa Weber).
10.
A ausência de motivação
concreta já seria suficiente para afastar a custódia preventiva na hipótese,
tornando definitiva a liminar implementada em favor dos pacientes e estendida
aos corréus. No entanto, há outra razão que conduz à concessão da ordem.
III. INCONSTITUCIONALIDADE DA
CRIMINALIZAÇÃO DA INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA
GESTAÇÃO EFETIVADA NO PRIMEIRO TRIMESTRE
11.
Em segundo lugar, é preciso examinar a própria constitucionalidade do
tipo penal imputado aos pacientes e corréus, já que a existência do crime é
pressuposto para a decretação da prisão preventiva, nos termos da parte final
do art. 312 do CPP. Para ser
compatível com a Constituição, a criminalização de determinada conduta exige
que esteja em jogo a proteção de um bem jurídico relevante, que o comportamento
incriminado não constitua exercício legítimo de um direito fundamental e que
haja proporcionalidade entre a ação praticada e a reação estatal.
12.
No caso aqui analisado, está
em discussão a tipificação penal do crime de aborto voluntário nos arts. 124 a 126 do Código
Penal6, que punem tanto o aborto provocado
pela
5 CPP, Art. 312: A prisão preventiva
poderá ser decretada como garantia da ordem pública, da ordem econômica, por
conveniência da instrução criminal, ou para assegurar a aplicação da lei penal,
quando houver prova da existência do
crime e indício suficiente de autoria. (Redação dada pela Lei nº 12.403, de 2011).
6 Aborto provocado pela gestante ou
com seu consentimento - Art. 124 - Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque:
Pena - detenção, de um a três anos.
Aborto
provocado por terceiro - Art. 126 - Provocar aborto com o consentimento da
gestante: Pena - reclusão, de um a quatro anos.
gestante quanto por terceiros com o
consentimento da gestante. O bem jurídico protegido – vida potencial do feto – é evidentemente
relevante. Porém, a criminalização do aborto antes de concluído o primeiro
trimestre de gestação viola diversos direitos fundamentais da mulher, além de
não observar suficientemente o princípio da proporcionalidade. É o que se demonstrará a seguir.
13.
Antes de avançar, porém,
cumpre estabelecer uma premissa importante para o raciocínio a ser
desenvolvido: o aborto é uma prática que se deve procurar evitar, pelas
complexidades físicas, psíquicas e morais que envolve. Por isso mesmo, é papel
do Estado e da sociedade atuar nesse sentido, mediante oferta de educação
sexual, distribuição de meios contraceptivos e amparo à mulher que deseje ter o
filho e se encontre em circunstâncias adversas. Portanto, ao se afirmar aqui a
incompatibilidade da criminalização com a Constituição, não se está a fazer a
defesa da disseminação do procedimento. Pelo contrário, o que ser pretende é
que ele seja raro e seguro.
1.
Violação a direitos fundamentais das mulheres7
14.
A relevância e delicadeza da
matéria justificam uma brevíssima incursão na teoria geral dos direitos
fundamentais. A história
da humanidade é a história da afirmação
do
7 Há diversos trabalhos seminais nessa
matéria tanto no Brasil como no exterior. No país, destacam- se os seguintes
trabalhos: (i) Debora Diniz; Marcelo Medeiros, “Aborto no Brasil: uma pesquisa
domiciliar com técnica de urna”, Ciência
e Saúde Coletiva, v. 15, p. 959-966, 2010; (ii) Debora Diniz, Marilena
Corrêa, Flávia Squinca, Kátia Soares Braga, “Aborto: 20 anos de pesquisa no
Brasil.” Cadernos
de Saúde Pública, v. 25, n. 4, 2009; (iii) Jacqueline Pitanguy. “O movimento
nacional e internacional de saúde e direitos reprodutivos.” In Griffin, Karen e Costa, Sarah Hawker
(orgs.). Questões da saúde reprodutiva, 1999; (iv) Flávia
Piovesan, “Os Direitos Reprodutivos como Direitos Humanos”. In: Samantha
Buglione (org.). Reprodução e Sexualidade: Uma Questão de Justiça, 2002,
(v) Leila
Linhares Barsted, “O movimento feminista e a descriminalização do aborto”,
Revista Estudos Feministas, v. 5, n. 2, 1997; (vi) Maria Isabel Baltar da
Rocha, “A discussão política sobre aborto no Brasil: uma síntese.”, Revista
Brasileira de Estudos Populacionais, v. 23. n. 2, 2006; (vii) Lucila Scavone,
“Políticas feministas do aborto.”, Revista Estudos Feministas, v. 16, n. 2,
2008; (viii) Dossiê Aborto: Mortes Previsíveis e Evitáveis, 2005. No exterior, v.: (i) Judith Jarvis
Thomson, “A Defense of Abortion.” Philosophy & Public Affairs, Vol. 1, no.
1, 1971; (ii) Kristin Luker, Abortion & the Politics of Motherhood, 1984;
(iii) Ronald Dworking, Life's Dominion: An Argument About Abortion, Euthanasia,
and Individual Freedom, 1994; (iv) Robin West, “From Choice to Reproductive
Justice: De- Constitutionalizing
Abortion Rights.” The Yale Law Journal, vol. 118, no. 7, 2009; (v) Ruth Bader
Ginsburg, “Some Thoughts on Autonomy and Equality in Relation to Roe v. Wade”.
North Caroline Law Review, vol. 63, 1985; (vi) Catherine Mackinnon, “Reflections
on Sex Equality Under Law”. Yale Law Journal, vol. 100, 1991; (vii) Francis
Beckwith, “Personal Bodily Rights, Abortion, and Unplugging the Violinist.”
International Philosophical Quarterly, vol.
32, no. 1, 1992; (viiii) Rebecca Cook, Joanna Erdman, Bernard Dickens, Abortion
Law in Transnational Perspective: Cases
and controversies, 2014; (ix)
John Hart Ely, “The Wages of the Crying Woolf: A Coment on Roe v. Wade”. Yale Law
Jornal, vol. 82, 1973.
indivíduo em face do poder
político, do poder econômico e do poder religioso, sendo que este último
procura conformar a moral social dominante. O produto deste embate milenar são
os direitos fundamentais, aqui entendidos como os direitos humanos incorporados
ao ordenamento constitucional.
15.
Os direitos fundamentais
vinculam todos os Poderes estatais, representam uma abertura do sistema
jurídico perante o sistema moral8 e funcionam como uma reserva
mínima de justiça assegurada a todas as pessoas9.
Deles resultam certos deveres abstenção e de atuação por parte do Estado e da
sociedade. Após a Segunda Guerra Mundial, os direitos fundamentais passaram a
ser tratados como uma emanação da dignidade humana, na linha de uma das
proposições do imperativo categórico kantiano: toda pessoa deve ser tratada como
um fim em si mesmo, e não um meio para satisfazer interesses de outrem ou
interesses coletivos. Dignidade significa, do ponto de vista subjetivo, que todo indivíduo tem valor intrínseco e
autonomia.
16.
Característica essencial dos
direitos fundamentais é que eles são oponíveis às maiorias políticas. Isso
significa que eles funcionam como limite ao legislador e até mesmo ao poder
constituinte reformador (CF, art. 60,
§ 4º)10. Além disso, são eles dotados de aplicabilidade direta e imediata, o
que legitima a atuação da jurisdição constitucional para a sua proteção, tanto
em caso de ação como de omissão legislativa.
17.
Direitos fundamentais estão
sujeitos a limites imanentes e a restrições expressas. E podem, eventualmente,
entrar em rota de colisão entre si ou com princípios constitucionais ou fins
estatais. Tanto nos casos de
restrição quanto nos de colisão, a solução das situações concretas deverá
valer-se do princípio instrumental da razoabilidade ou proporcionalidade11.
8 Robert Alexy, Teoria
dos direitos fundamentais, 2008, p. 29.
9 Luís Roberto Barroso, Grandes transformações do
direito contemporâneo e o pensamento de Robert Alexy, 2015. In: http://s.conjur.com.br/dl/palestra-barroso-alexy.pdf, acesso em 28
nov. 2016.
10 Note-se que embora o dispositivo faça referência aos direitos e
garantias individuais, o entendimento
dominante é no sentido de que a proteção se estende a todos os direitos
materialmente fundamentais.
11 Sobre o tema, v. Robert Alexy, Teoria e los derechos fundamentales,
1997, p. 111; Aharon Barak, Proportionality:
constitutional rights and their limitations; e Luís Roberto Barroso, Curso de direito constitucional
contemporâneo, 2015, p. 289-295.
18.
O princípio da
proporcionalidade destina-se a assegurar a razoabilidade substantiva dos atos
estatais, seu equilíbrio ou justa medida. Em uma palavra, sua justiça. Conforme
entendimento que se tornou clássico pelo mundo afora, a proporcionalidade
divide- se em três subprincípios: (i) o da adequação,
que identifica a idoneidade da medida para atingir o fim visado; (ii) a necessidade, que expressa a vedação do
excesso; e (iii) a proporcionalidade em
sentido estrito, que consiste na análise do custo-benefício da providência
pretendida, para se determinar se o que
se ganha é mais valioso do que aquilo que se
perde.
19.
A proporcionalidade, irmanada
com a ideia de ponderação, não é capaz de oferecer, por si só, a solução
material para o problema posto. Mas uma e outra ajudam a estruturar a
argumentação de uma maneira racional, permitindo a compreensão do itinerário
lógico percorrido e, consequentemente, o controle intersubjetivo das decisões.
20.
Passando da teoria à prática,
é dominante no mundo democrático e desenvolvido a percepção de que a
criminalização da interrupção voluntária da gestação atinge gravemente diversos
direitos fundamentais das mulheres, com reflexos inevitáveis sobre a dignidade
humana12. O pressuposto do argumento
aqui apresentado é que a mulher que se
encontre diante desta decisão
trágica – ninguém em sã consciência suporá que se faça um aborto por prazer ou
diletantismo – não precisa que o Estado torne a sua vida ainda pior,
processando-a criminalmente. Coerentemente, se a conduta da mulher é legítima,
não há sentido em se incriminar o profissional de saúde que a viabiliza.
21.
Torna-se
importante aqui uma breve anotação sobre o status jurídico do embrião durante fase
inicial da gestação. Há duas posições antagônicas em relação ao ponto. De um
lado, os que sustentam que existe vida desde a concepção, desde que o
espermatozoide fecundou o óvulo, dando origem à multiplicação das células. De
outro lado, estão os que sustentam que antes da formação do sistema nervoso
central e da presença de rudimentos de consciência – o que geralmente se dá
após o terceiro mês da gestação – não é possível ainda falar-se em vida em
sentido pleno.
22.
Não há solução jurídica para esta controvérsia. Ela dependerá sempre de uma escolha religiosa ou filosófica de cada um a respeito da vida. Porém, exista ou não vida a ser
12 Luís Roberto Barroso, “Aqui, lá e em todo lugar”: a
dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional, Revista dos Tribunais 919:127-196, 2012,
p. 183 e s.
protegida, o que é fora de dúvida é
que não há qualquer possibilidade de o embrião subsistir fora do útero materno
nesta fase de sua formação. Ou seja: ele dependerá integralmente do corpo da
mãe. Esta premissa, factualmente incontestável, está subjacente às ideias que
se seguem.
23.
Confiram-se, a seguir, os direitos fundamentais afetados.
Violação à autonomia da mulher
24.
A criminalização viola, em
primeiro lugar, a autonomia da
mulher, que corresponde ao núcleo essencial da liberdade individual, protegida
pelo princípio da dignidade humana (CF/1988, art. 1º, III). A autonomia
expressa a autodeterminação das pessoas, isto é, o direito de fazerem suas
escolhas existenciais básicas e de tomarem as próprias decisões morais a
propósito do rumo de sua vida. Todo indivíduo
– homem ou mulher – tem assegurado um espaço legítimo de privacidade dentro do
qual lhe caberá viver seus valores, interesses e desejos. Neste espaço, o
Estado e a sociedade não têm o direito de interferir.
25.
Quando se trate de uma mulher,
um aspecto central de sua autonomia é o poder de controlar o próprio corpo e de
tomar as decisões a ele relacionadas, inclusive a de cessar ou não uma
gravidez. Como pode o Estado – isto é, um delegado de polícia, um promotor de
justiça ou um juiz de direito – impor a uma mulher, nas semanas iniciais da
gestação, que a leve a termo, como se tratasse de um útero a serviço da
sociedade, e não de uma pessoa autônoma,
no gozo de plena capacidade de ser, pensar
e viver a própria vida?
Violação do direito à integridade física e psíquica
26.
Em segundo lugar, a
criminalização afeta a integridade física
e psíquica da mulher. O direito
à integridade psicofísica (CF/1988, art. 5º, caput e III) protege os indivíduos contra interferências indevidas
e lesões aos seus corpos e mentes, relacionando-se, ainda, ao direito à saúde e
à segurança. A integridade física é abalada porque é o corpo da mulher que
sofrerá as transformações, riscos e consequências da gestação. Aquilo que pode
ser uma bênção quando se cuide de uma gravidez desejada, transmuda-se em
tormento quando indesejada. A integridade psíquica, por sua vez, é afetada pela
assunção de uma obrigação para toda a vida, exigindo renúncia, dedicação e
comprometimento profundo com outro ser. Também aqui, o que
seria uma bênção se decorresse de
vontade própria, pode se transformar em provação quando decorra de uma
imposição heterônoma. Ter um filho
por determinação do direito penal
constitui grave violação à integridade física e psíquica de uma mulher.
Violação aos direitos sexuais e reprodutivos da
mulher
27.
A criminalização viola,
também, os direitos sexuais e
reprodutivos da mulher, que
incluem o direito de toda mulher de decidir sobre se e quando deseja ter
filhos, sem discriminação, coerção e violência, bem como de obter o maior grau
possível de saúde sexual e reprodutiva. A sexualidade feminina, ao lado dos
direitos reprodutivos, atravessou milênios de opressão. O direito das mulheres
a uma vida sexual ativa e prazerosa, como se reconhece à condição masculina,
ainda é objeto de tabus, discriminações e preconceitos. Parte dessas disfunções
é fundamentada historicamente no papel que a natureza reservou às mulheres no
processo reprodutivo. Mas justamente porque à mulher cabe o ônus da gravidez,
sua vontade e seus direitos devem ser protegidos com maior intensidade.
28.
O reconhecimento dos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres como direitos humanos percorreu uma longa
trajetória, que teve como momentos decisivos a Conferência Internacional de
População e Desenvolvimento (CIPD), realizada em 1994, conhecida como
Conferência do Cairo, e a IV Conferência Mundial sobre a Mulher, realizada em
1995, em Pequim. A partir desses marcos, vem se desenvolvendo a ideia de
liberdade sexual feminina em sentido
positivo e emancipatório. Para os fins aqui relevantes, cabe destacar que do Relatório da Conferência do
Cairo constou, do Capítulo VII, a seguinte definição de direitos reprodutivos:
Ҥ 7.3. Esses direitos se baseiam no
reconhecido direito básico de todo casal e de todo indivíduo de decidir livre e
responsavelmente sobre o número, o espaçamento e a oportunidade de seus filhos
e de ter a informação e os meios de assim o fazer, e o direito de gozar do
mais alto padrão de saúde sexual e de
reprodução. Inclui também seu direito de tomar decisões
sobre a reprodução, livre de discriminação, coerção ou violência, conforme
expresso em documentos sobre direitos humanos”.
29.
O tratamento penal dado ao
tema, no Brasil, pelo Código Penal de 1940, afeta a capacidade de
autodeterminação reprodutiva da mulher, ao retirar dela a possibilidade de
decidir, sem coerção, sobre a maternidade, sendo obrigada pelo Estado a manter
uma gestação indesejada. E mais: prejudica sua saúde reprodutiva, aumentando os índices
de mortalidade
materna e outras complicações relacionadas à
falta de acesso à assistência de saúde adequada.
Violação à igualdade de gênero
29.
A norma repressiva traduz-se,
ainda, em quebra da igualdade de gênero.
A igualdade veda a hierarquização dos indivíduos e as desequiparações
infundadas, impõe a neutralização das injustiças históricas, econômicas e
sociais, bem como o respeito à diferença. A histórica posição de subordinação
das mulheres em relação aos homens institucionalizou a desigualdade
socioeconômica entre os gêneros e promoveu visões excludentes, discriminatórias e estereotipadas da
identidade feminina e do seu papel social. Há, por exemplo, uma visão idealizada em torno da experiência da maternidade, que, na prática,
pode
constituir
um fardo para algumas mulheres13. Na medida em que é a
mulher que suporta o ônus
integral da gravidez, e que o homem não engravida,
somente haverá igualdade plena se a ela for reconhecido o direito de decidir
acerca da sua manutenção ou não. A propósito, como bem observou o Ministro
Carlos Ayres Britto, valendo-se de
frase histórica do movimento feminista, “se
os homens engravidassem, não tenho dúvida em dizer que seguramente o aborto
seria descriminalizado de ponta a ponta”14.
Discriminação
social e impacto
desproporcional sobre mulheres
pobres
30.
Por fim, a tipificação penal
produz também discriminação social, já
que prejudica, de forma desproporcional, as mulheres pobres, que não têm acesso
a médicos e clínicas particulares, nem podem se valer do sistema público de
saúde para realizar o procedimento abortivo. Por meio da criminalização, o
Estado retira da mulher a possibilidade de submissão a um procedimento médico
seguro. Não raro, mulheres pobres precisam recorrer a clínicas clandestinas sem
qualquer infraestrutura médica ou a procedimentos precários e primitivos, que
lhes oferecem elevados riscos de lesões, mutilações e óbito.
31.
Em suma: na linha do que se sustentou no presente capítulo, a criminalização da interrupção da gestação no primeiro trimestre vulnera o núcleo essencial de um conjunto de direitos fundamentais da mulher. Trata-se, portanto, de restrição que ultrapassa os limites
13 Cristina Telles, Por um constitucionalismo feminista:
reflexões sobre o direito à igualdade de gênero, 2016, dissertação defendida no
Mestrado em Direito Público da UERJ.
14 ADPF 54-MC, j. 20.10.2004.
constitucionalmente aceitáveis. No
próximo capítulo, procede-se, de todo modo, a um teste de proporcionalidade,
para demonstrar que, também por esta linha argumentativa, a criminalização não é compatível com a Constituição.
2. Violação ao
princípio da proporcionalidade
32.
O legislador, com fundamento e
nos limites da Constituição, tem liberdade de conformação para definir crimes e
penas. Ao fazê-lo, deverá ter em conta dois vetores essenciais: o respeito aos
direitos fundamentais dos acusados, tanto no plano material como no processual;
e os deveres de proteção para com a sociedade, cabendo-lhe resguardar valores,
bens e direitos fundamentais dos seus integrantes. Nesse ambiente, o princípio
da razoabilidade-proporcionalidade, além de critério de aferição da validade
das restrições a direitos fundamentais, funciona também na dupla dimensão de
proibição do excesso e da insuficiência.
33. Cabe acrescentar, ainda, que o Código Penal brasileiro data de 1940. E,
a despeito de inúmeras atualizações ao longo dos anos, em relação aos crimes
aqui versados – arts. 124 a 128 – ele conserva a mesma redação. Prova da
defasagem da legislação em relação aos valores contemporâneos foi a decisão do
Supremo Tribunal Federal na ADPF nº 54, descriminalizando a interrupção da gestação
na hipótese de fetos anencefálicos. Também a
questão do aborto até o terceiro mês de gravidez precisa ser revista à luz dos
novos valores constitucionais trazidos pela Constituição de 1988, das
transformações dos costumes e de uma perspectiva mais cosmopolita.
34. Feita esta breve introdução, e na linha do que foi exposto acerca dos
três subprincípios que dão conteúdo à proporcionalidade, a tipificação penal
nesse caso somente estará então justificada se: (i) for adequada
à tutela do direito à vida do feto (adequação);
(ii) não houver outro meio que
proteja igualmente esse bem jurídico e que seja menos restritivo dos direitos
das mulheres (necessidade); e (iii) a
tipificação se justificar a partir da análise de seus custos e benefícios (proporcionalidade em sentido estrito).
Subprincípio da adequação
35.
Em relação à adequação, é preciso
analisar
se
e
em
que
medida
a
criminalização protege a vida do
feto15. É, porém, notório que as taxas de aborto nos
países onde esse procedimento é permitido são muito semelhantes àquelas
encontradas nos países em que ele é ilegal16. Recente estudo do Guttmacher
Institute e da Organização Mundial da
Saúde (OMS) demonstra que a criminalização não produz impacto relevante
sobre o número de abortos17. Ao
contrário, enquanto a taxa anual de abortos em países onde o procedimento pode
ser realizado legalmente é de 34 a cada 1 mil mulheres em idade reprodutiva, nos
países em que o aborto é criminalizado,
a taxa sobe para 37 a cada 1 mil mulheres18. E estima-se que 56 milhões de abortos voluntários tenham ocorrido por
ano no mundo apenas entre 2010 e 201419.
36.
Na verdade, o que a
criminalização de fato afeta é a quantidade de abortos seguros e,
consequentemente, o número de mulheres que têm complicações de saúde ou que
morrem devido à realização do procedimento20.
Trata-se de um grave problema de saúde pública, oficialmente reconhecido21. Sem contar que há dificuldade em conferir efetividade à proibição, na
medida em que se difundiu o uso de medicamentos para a interrupção da gestação,
consumidos privadamente, sem que o Poder Público tenha meios para tomar
conhecimento e impedir a sua realização22.
37.
Na prática, portanto, a criminalização do aborto é ineficaz
para proteger o
15 Verónica
Undurraga, “Proportionality in the Constitutional Review of Abortion Law”. In:
Rebecca Cook, Joanna Erdman, Bernard Dickens (org.), Abortion law in
transnational perspective: cases and controversies, 2014.
16 Sobre o tema, v. BARROSO, Luís
Roberto, “Aqui, lá e em todo lugar”: a dignidade humana no direito
contemporâneo e no discurso transnacional, Revista
dos Tribunais 919:127-196, 2012, p. 183
e s.
17 Gilda
Sedgh et al., Abortion incidence between 1990 and 2014: global, regional, and
subregional levels and trends, The Lancet, vol. 388, iss. 10041, 2016.
18 Disponível em: <https://www.guttmacher.org/infographic/2016/restrictive-laws-do-not-stop-women-
having-abortions>
20 V.
Susan A. Cohen, New Data on Abortion Incidence, Safety Illuminate Key Aspects
of Worldwide Abortion Debate, Guttmacher Policy Review, n. 10, disponível em:
21 De acordo com
relatório do governo brasileiro, “4% das
mortes de gestantes estão relacionadas a abortos realizados em condições
inseguras, situação que configura um problema de saúde pública de significativo
impacto no país”. V. Informe do Brasil no contexto do 20o aniversário da aprovação da
Declaração e Plataforma de Ação de Pequim, apresentado por ocasião da 59a
Sessão da Comissão sobre a Situação das Mulheres, realizada na sede da ONU em
Nova York, de 9 a 20/03/2015 (http://www.onumulheres.org.br/pequim20/csw59/),acesso em 29 nov.
2016.
22 Verónica
Undurraga, “Proportionality in the Constitutional Review of Abortion Law”. In:
Rebecca Cook, Joanna Erdman, Bernard Dickens (org.), Abortion law in
transnational perspective: cases and controversies, 2014.
direito à vida do feto. Do ponto de
vista penal, ela constitui apenas uma reprovação “simbólica” da conduta23. Mas, do ponto de vista médico, como
assinalado, há um efeito perverso sobre as mulheres pobres, privadas de
assistência. Deixe-se bem claro: a reprovação moral do aborto por grupos religiosos ou por quem quer que seja é perfeitamente legítima.
Todos têm o direito de se expressar e de defender
dogmas, valores e convicções. O que refoge
à razão pública é a possibilidade de um dos lados, em um tema eticamente
controvertido, criminalizar a posição do outro.
38. Em temas moralmente divisivos, o papel adequado do Estado não é tomar
partido e impor uma visão, mas permitir que as mulheres façam sua escolha de
forma autônoma. O Estado precisa estar do lado de quem deseja ter o filho. O
Estado precisa estar do lado de quem não deseja – geralmente porque não pode –
ter o filho. Em suma: por ter o dever de estar dos dois lados, o Estado não
pode escolher um.
39. Portanto, a criminalização do aborto não é capaz de evitar a interrupção
da gestação e, logo, é medida de duvidosa adequação para a tutela da vida do
feto. É preciso reconhecer, como fez o Tribunal Federal Alemão, que,
considerando “o sigilo relativo ao
nascituro, sua impotência e sua dependência e ligação única com a mãe, as
chances do Estado de protegê-lo serão maiores se trabalhar em conjunto com a mãe”24, e não tratando
a mulher
que
deseja abortar como uma criminosa.
Subprincípio da necessidade
40.
Em relação à necessidade, é
preciso verificar se há meio alternativo à criminalização que proteja
igualmente o direito à vida do nascituro, mas que produza menor restrição aos
direitos das mulheres. Como visto, a criminalização do aborto viola a
autonomia, a integridade física e psíquica e os direitos sexuais e reprodutivos
da mulher, a igualdade de gênero, e produz impacto discriminatório sobre as
mulheres pobres.
41. Nesse ponto, ainda que se pudesse atribuir uma mínima eficácia ao uso do
direito penal como forma de evitar a interrupção da gestação, deve-se
reconhecer que há outros
23 V. Verónica Undurraga, Op. cit. p. 86.
24 Alemanha, Tribunal Federal Alemão, 88 BVerfGE 203,
note 25, at para. 189.
instrumentos que são eficazes à
proteção dos direitos do feto e, simultaneamente, menos lesivas aos direitos da mulher. Uma política alternativa à
criminalização implementada com sucesso em diversos países desenvolvidos do
mundo é a descriminalização do aborto em seu estágio inicial (em regra, no
primeiro trimestre), desde que se cumpram alguns requisitos procedimentais que
permitam que a gestante tome uma decisão refletida. É assim, por exemplo, na Alemanha,
em que a grávida que pretenda abortar
deve se submeter a uma consulta de
aconselhamento
e a um período de reflexão prévia de três dias25.
Procedimentos semelhantes
também são previstos em Portugal26, na França27 e
na Bélgica28.
42.
Além disso, o Estado deve
atuar sobre os fatores econômicos e sociais que dão causa à gravidez indesejada
ou que pressionam as mulheres a abortar29. As
duas razões mais comumente invocadas para o aborto são a impossibilidade de
custear a criação dos filhos e a drástica mudança na vida da mãe (que a faria, e.g., perder oportunidades de carreira)30. Nessas situações, é importante a existência de uma rede de apoio à
grávida e à sua família, como o acesso à creche e o direito à assistência
social. Ademais, parcela das gestações não programadas está relacionada à falta
de informação e de acesso a métodos contraceptivos. Isso pode ser revertido,
por exemplo, com programas de planejamento familiar, com a distribuição
gratuita de anticoncepcionais e assistência especializada à gestante e educação
sexual. Logo, a tutela penal também dificilmente seria aprovada no teste da necessidade.
Subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito
43.
Por fim, em relação à
proporcionalidade em sentido estrito, é preciso
verificar se as restrições aos direitos fundamentais das mulheres
decorrentes da criminalização são ou não compensadas pela proteção à vida do feto.
25 Alemanha, Tribunal Federal Alemão,
88 BVerfGE 203; Reforma ao Código Penal de 1995.
26 Portugal, Lei no 16/2007
27 França, Código de Saúde Pública, Lei
no 2001-588/2001 e Código Penal.
28 Bélgica, Código Penal de 1867
(reforma de 1990).
29 Kristen
Day, “Supporting pregnant women and their families to reduce the abortion
rate”. In: Robin West, Justin Murray, Meredith Esser (org.), In search of
common ground on abortion: From culture
war to reproductive justice, 2014; Dorothy Roberts, “Toward Common Ground
on Policies Advancing Reproductive Justice”.
Id.
30 Kristen
Day, Op. cit. p. 144.
44. De um lado, já se demonstrou amplamente que a tipificação penal do
aborto produz um grau elevado de restrição a direitos fundamentais das
mulheres. Em verdade, a criminalização confere uma proteção deficiente aos
direitos sexuais e reprodutivos, à autonomia, à integridade psíquica e física,
e à saúde da mulher, com reflexos sobre a igualdade de gênero e impacto
desproporcional sobre as mulheres mais pobres. Além disso, criminalizar a mulher que deseja abortar gera custos
sociais e para o sistema de saúde, que decorrem da necessidade de a mulher se
submeter a procedimentos inseguros, com aumento da morbidade e da letalidade.
45. De outro lado, também se verificou que a criminalização do aborto
promove um grau reduzido (se algum) de proteção dos direitos do feto, uma vez
que não tem sido capaz de reduzir o índice de abortos. É preciso reconhecer,
porém, que o peso concreto do direito à vida do nascituro varia de acordo com o
estágio de seu desenvolvimento na gestação. O grau de proteção constitucional ao feto é, assim,
ampliado na medida em que a gestação avança e que o feto adquire viabilidade
extrauterina, adquirindo progressivamente maior peso concreto. Sopesando-se os
custos e benefícios da criminalização, torna-se evidente a ilegitimidade
constitucional da tipificação penal da interrupção voluntária da gestação, por
violar os direitos fundamentais das mulheres e gerar custos sociais (e.g., problema de saúde pública e
mortes) muito superiores aos benefícios da criminalização.
46. Tal como a
Suprema Corte dos EUA declarou no caso Roe
v. Wade, o interesse do Estado na proteção da
vida pré-natal não supera o direito fundamental da mulher realizar um aborto31. No mesmo sentido, a decisão da Corte Suprema de Justiça do Canadá, que
declarou a inconstitucionalidade de artigo do Código Penal que criminalizava o
aborto no país, por violação à proporcionalidade32. De
acordo com a Corte canadense, ao impedir que a mulher tome a decisão de
interromper a gravidez em todas as suas etapas, o Legislativo teria falhado em estabelecer um standard
capaz de equilibrar, de forma justa,
os interesses do feto e os
direitos da mulher. Anote-se, por
derradeiro, que praticamente nenhum país democrático e desenvolvido do mundo
trata a interrupção da gestação durante a fase inicial da gestação como crime,
aí incluídos Estados Unidos, Alemanha, Reino Unido, Canadá, França, Itália,
Espanha, Portugal, Holanda e Austrália.
31 EUA, Suprema
Corte dos EUA, Roe. V. Wade, 10 U.S.
113 (1973) (assegurando o direito de a mulher realizar um aborto nos dois
primeiros trimestres da gravidez).
32 Canadá, Suprema
Corte de Justiça canadesnse, R. v. Morgentaler, [1988] 1 SCR 30.
47. Nada obstante isso, para que não se confira uma proteção insuficiente
nem aos direitos das mulheres, nem à
vida do nascituro, é possível reconhecer a constitucionalidade da tipificação
penal da cessação da gravidez que ocorre quando o feto já esteja mais
desenvolvido. De acordo com o regime adotado em diversos países (como Alemanha,
Bélgica, França, Uruguai e Cidade do México), a interrupção voluntária da
gestação não deve ser criminalizada, pelo menos, durante o primeiro trimestre
da gestação. Durante esse período, o córtex
cerebral – que permite que o feto desenvolva sentimentos e racionalidade – ainda não
foi
formado, nem há qualquer potencialidade de vida fora do útero materno33. Por tudo isso, é
preciso conferir interpretação
conforme a Constituição ao arts. 124 e 126 do Código Penal, para excluir do seu âmbito de incidência a
interrupção voluntária da gestação efetivada no primeiro trimestre.
48. No caso em exame, como o Código Penal é de 1940 – data bem anterior à
Constituição, que é de 1988 – e a jurisprudência do STF não admite a declaração
de inconstitucionalidade de lei anterior à Constituição, a hipótese é de não
recepção (i.e., de revogação parcial ou, mais tecnicamente, de derrogação) dos
dispositivos apontados do Código Penal. Como consequência, em razão da não
incidência do tipo penal imputado aos pacientes e corréus à interrupção
voluntária da gestação realizada nos três primeiros meses, há dúvida fundada
sobre a própria existência do crime, o que afasta a presença de pressuposto
indispensável à decretação da prisão preventiva, nos termos da parte final do caput do art. 312 do CPP.
III. CONCLUSÃO
49.
Ante o exposto, concedo de
ofício a ordem de habeas corpus para
afastar a prisão preventiva dos pacientes, estendendo-a aos corréus.
33 Daniel Sarmento, Legalização do
aborto e Constituição. In: Revista de Direito Administrativo, v. 240, 2005.
Até onde sabemos, as clínicas clandestinas de aborto faziam a interrupção até o terceiro mês, face ao risco menor de hemorragia para a abortante.
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